domingo, 24 de junho de 2012

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe


Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...


Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou


Sei que não vou por aí!

quinta-feira, 21 de junho de 2012


[Parte II]

Ana morava nos fundos de uma casa grande na região litorânea da cidade. A casa pertencia a senhora Tera, não sei se era o nome ou apelido. Lembro vagamente que Ana tinha comentado sobre as crianças da vizinhança terem muito medo da senhora Tera. Vai ver a coitada era apenas uma viúva pensionista que tirava sustento alugando quartinhos baratos nos fundos da casa.

Quando chegamos, Ana me alertou para não fazer barulho. Isso não seria fácil, eu estava bêbado feito um gambá e era difícil cadenciar os passos.

- Olha, vamos atravessar esse corredor silenciosamente. Meu quarto fica lá no final. Entendido?
-Vamos dormir aqui mesmo! Apontei para o jardim e fui me guiando entre as tulipas e outras flores coloridas.

Ana, que também não estava no seu melhor estado de sobriedade, sussurrou quase que sem voz.

-Ei, eeeei, por aí não. Você vai foder com tudo! Dona Tera tem um mau humor terrível e vai nos expulsar daqui!

Arranquei uma flor, a mais bonita do jardim e imaginei qual é a sensação de uma flor ao ser arrancada. Ali, na minha mão, preservando a beleza mesmo sem vida. Voltei para o caminho do corredor e começamos a andar juntos, eu logo atrás de Ana, tentando acertar os passos e ela fazendo sinais e gestos, mostrando onde eu não deveria pisar.

-Shhh! Cuidado com as garrafas.

Me concentrei mais um pouco e conseguimos chegar ao fim do corredor e até a porta do seu quarto. Enquanto procurava a chave do portão na bolsa que carregava, percebi que ela realmente tinha pernas torneadas, o salto evidenciava a musculatura, excitantemente. Aproximei-me por trás, respirando propositalmente na sua nuca. Percebi que se arrepiava e não conseguia acertar a fechadura. A virei com um pouco de força excessiva, quase batemos na testa um do outro. Ela riu e me beijou.

Uma longa série de casos amorosos complicados parecem ter acabado com ela. Agora, lá estava eu, igualmente arruinado, beijando-a e tentando tirar meio desesperadamente aquelas roupas molhadas que parecia uma segunda pele, de tão grudada no corpo. Parecia que os dois não transavam há séculos. O sexo tem dessas coisas, é o que mais nos aproxima dos outros animais. Viramos bichos selvagens, pau selvagem, boceta feroz.

Ana pediu um minuto, respirou fundo, colocou a franja para trás da orelha esquerda e conseguiu abrir a porta. Entrei e sentei-me a mesa. Apesar de pequeno, o kit net era limpo e com poucos móveis. O assoalho era todo de madeira e parecia ranger com os meus passos. Eu andava e mais parecia que estava cagado, cada passo e um gemido.

Sentei-me a mesa enquanto ela abria a geladeira atrás de comida e vinho. Esperei por uns dez minutos e pensei que Ana tivesse morrido na cozinha. Sabe como é, nunca nada disso aconteceu comigo, digo, nada de tão pavoroso a ponto de me testar. O que eu faria se ela realmente estivesse morta? Um homem precisa ser testado constantemente

Assim que finalizei o pensamento, o chão começou a ranger novamente e lá vinha Ana, destruindo toda a 
minha tese de morte, pois trazia a vida em seu semblante.

-Afaste-se um pouco. Deixe-me sentar com você.

Ana afastou minha cadeira da mesa e sentou-se no meu colo, já despida, apenas com as roupas de baixo e uma garrafa de vinho nas mãos. Seu corpo ainda dava para o gasto. Não parecia ser o tipo de mulher que se cuidava ou se importava com a beleza, mas talvez tivesse sido abençoada por algum anjo pervertido que lhe deu belas curvas e uma tonalidade branca da pele, impecável.
Enquanto bebíamos e conversávamos a chuva metralhava o telhado de zinco, sem piedade. Parecia o dilúvio. Pensei em Noé.

Por fim trepamos ali mesmo, em cima da mesa de mármore fria que ocupava o centro da sala vazia.
Acordamos levemente ressacados. Os passarinhos cantavam bastante, agradecendo o sol por ter espantado tanta chuva. Olhei para o lado da cama e não a vi. Apenas nossas roupas molhadas no chão e a TV ligada, porém muda.

- Um ou dois? Um ou dois, baby?
Senti o cheiro de ovo frito vindo pela porta.

-Apenas um meu bem. E quando vir traga a carteira de cigarros.

Eu não sentia vontade de fazer nada, pensar em nada. Apenas existir. Sentia-me muito bem.
O chão começou a ranger novamente. Era Ana me trazendo algumas coisas. Pensei em como deve ser esquisito morar em uma casa de madeira, parece que estamos sendo sempre perseguidos com tanta rangedeira.

Ela trouxe uma bandeja com ovos fritos e algumas torradas murchas, colocou-a entre nós dois.

-Desculpe-me, as panquecas já estavam verdes e só tenho isso por aqui.

-Onde você esteve esse tempo todo, baby?

-Aqui! Sempre estive aqui... Agora coma antes que esfrie.

- Como é o nome da mulher que te deixou?

-Como sabe disso?

- Sua expressão é de alguém desiludido, deixado.

- Pareço tão estúpido assim? Falei rindo pelo canto da boca.

- Sim. Todos nós somos.

-Enfim, não faz diferença. Não importa...

- Então ela se mandou, sem mais nem menos?

-Sim, não sei pra onde.

- Sente falta dela, não é?

-Acho que sim, às vezes sinto um nó na garganta, dá vontade de chorar. Creio que não vou me recuperar dessa.
Eu nunca tinha sido tão sincero, me sentia ridículo, fraco e sentimental.

-Vai sim, vamos dar um jeito de superá-la. Isso acontece com todos.

-Então, sabes como me sinto?

-Claro. Ou você acha que é o único?

-A cadela nunca ligou pra mim. Ela dava mole pra qualquer cara que se mostrasse um pouco interessante. 
Desses que têm um cabelo legal, tocam algum instrumento, entendem de cultura e sabem fazer malabarismo. Não sou bom em nada disso.

Ana foi pra trás de mim e começou a massagear minhas costas.

-Bobagem, ela liga sim.

Decidi que era melhor estar ali com Ana, do que sozinho no meu apartamento.
Acabamos de comer, esperei ela acender o cigarro, me inclinei sobre a bandeja e a agradeci com um beijo.

-Você é um bom homem.

-Você me faz sentir bem. Obrigado.

Fiquei deitado na cama por mais dez minutos, apenas admirando Ana debruçada na janela, lindamente de calcinha verde, a baforar fumaça para fora.

sábado, 16 de junho de 2012

Para ela que foi descoberta entre chuva e sorrisos.

Eu sei que muitos já te olharam antes, mas eu havia me fixado nela, reparado, e acho que essa foi a minha vantagem.

Estive aguardando sua chegada a meses, mesmo sem te conhecer, mas eu sabia que apareceria.
Talvez se a noite passada não tivesse chovido, ainda estaríamos no anonimato total. Você a fazer seu mestrado em pedagogia, ler Marx, e acender um cigarro com uma elegância de fazer inveja a qualquer atriz clássica. Eu ainda estaria na mesma também, planejando minha viagem, lamentando por amores passados e aprendendo a fazer artesanatos em lã.

Mas choveu e todos procuraram abrigo, não carrego nada de valor comigo por isso não me importei com a água. Mas lá estava uma mulher tão bela cujos lábios formavam dois rios vermelhos separados por uma fenda enorme no meio e convergindo para as pontas, sorriso largo e quadril estreito, quanto aos olhos, não há descrição para eles, olhos são infinitos e os dela me levam a uma dedicação literária exclusiva. Uma mulher que faria qualquer um jogar todos os princípios no lixo. Sozinha - Como pode estar sozinha? - Decidi repentinamente que o frio me incomodava e me abriguei do seu lado, fiz questão de ficar entre você e a parede, mesmo com um espaço maior na outra direção do teto que nos protegia. (Queria que soubesse disso).


Só agora me dei conta de algumas coisas. O mundo é cheio de possibilidades e Beatriz conseguiu me provar isso com uma retórica puco argumentativa. Quem não acredita do que sai da sua boca? Eu apenas queria beijá-la e sentir ela arrepiando minha nuca com as duas mãos.

Queria ser capaz de parar o tempo, dizem que existe um vilarejo onde o tempo nos espera. Arrume sua mochila e me acompanhe. Eu sei que a ideia de mochilar por aí te assusta e achas que sou louco. Mas qualquer viagem com você parece ser mais confortante, menos cinza. Quer se mudar para lá comigo? Assim não terás que levantar a cabeça do meu peito mais nunca, e poderemos dormir mais quantos minutos quisermos, eu contando uma história engraçada da minha adolescência enquanto embaraço meus dedos nos teus cabelos que são mais lindos que qualquer obra de arte pós moderna, e você enrolando alguns poucos fios que tenho no peito, tentando achar significados diferentes para minha tatuagem, com a perna esquerda sobre as minhas pernas, como se tivesse medo que eu fugisse ou aquele momento fosse interrompido por qualquer austeridade absurda.

Eu apenas sorria da nossa situação, juntos parecia que nada mais poderia me tirar do eixo. Gozávamos de uma noite intensa, cheia de simbolismo. O jeito que você me beijou desejando boa noite e dizendo: "Toda dor vem do desejo de não sentirmos dor." Me marcou na pele, pois eu não queria dormir, não queria acordar, não queria que o intenso desejo de ser e existir esvai-se pelo colchão. Sensação etérea e rarefeita.

Bia, agradeço por embaraçar toda a visão de efemeridade que eu carregava comigo. Não sei quando vamos nos encontrar novamente, mas sei que vai acontecer, pois tu és uma espécia de medusa dos tempos de hoje, capaz de embrutecer um homem, friamente, apaixonadamente, com coragem.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Outra cama
A mesma mulher


Cortinas
Banheiros
Cozinhas


Os mesmos olhos
Mesmos cabelos
Mesmas tatuagens


Todos à procura.
A busca eterna.


Acordo mais cedo que ela e vejo o mesmo rosto
Me pergunto repetidamente o que aconteceu com ela
nos últimos dias longe com outros antes de mim.


É tudo tão confortável - esse fazer amor -
Esse dormir juntos,
A suave delicadeza.


Entro no banheiro após ela sair - é tudo tão intimamente estranho
Retornamos para cama e dormimos uma hora equivalente a 10 minutos


Quando ela vai embora, deixa tristeza
Mas acho que a verei novamente, quer funcione, quer não.


Já fui, certa vez, suficientemente forte para viver sozinho
Para um homem prestes a viajar, eu deveria ser mais sensato.


Dou a partida no carro, engato a ré e tiro da garagem
pensando, vou ligar para ela logo que chegar
Não a vejo desde domingo.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

o verdadeiro deus é a desordem
o verdadeiro deus é a loucura

viver em paz permanente é
viver permanentemente morto

a agonia pode matar
ou
a agonia pode dar sustentação à vida
mas a paz é sempre horripilante
a paz é o que há de pior
caminhadas
conversas
sorrisos,
a aparência das coisas.

não se esqueça das calçadas
das putas,
da traição,
do verme na maçã,
dos bares, das cadeias,
dos suicídios dos amantes.

aqui na América
assassinamos um presidente e seu irmão,
outro presidente desistiu do cargo.

pessoas que acreditam em política
são como pessoas que acreditam em deus:
estão chupando vento através de canudos curvos.

não há deus
não há política
não há paz
não há amor
não há controle
não há plano
fique longe de deus
siga perturbado.


Charles B.


Charles